O Rei da Comédia (1982)

 


Rupert Pupkin é um aspirante humorista que pretende um sucesso instantâneo. Para tal, Rupert está disposto a todos os meios para atingir o seu fim e apresentar um talk-show que o fará ser conhecido.

           

            Dois anos depois de ter realizado Touro Enraivecido (Raging Bull), Martin Scorsese voltou a lançar um filme que viria a tornar-se num clássico do cinema, inspirando vários outros filmes, como o mais recente galardoado Joker, de Todd Philips. Martin Scorsese já havia realizado pelo menos um filme em que representava problemas mentais no protagonista, como é o caso de Taxi Driver. O argumento de O Rei da Comédia é da autoria de Paul D. Zimmerman e produzido pela 20th Century Fox.

            O Rei da Comédia é uma obra que merece o melhor dos tratamentos e envelheceu lindamente. Se Taxi Driver ficou icónico pela personagem de Travis Bickle e a grande representação de Robert De Niro, também em O Rei da Comédia este ator desempenha, com grande profissionalismo e rigor, uma personagem perseguidora, impulsiva, perigosa e com grandes traços de problemas mentais como é Rupert Pupkin. O Rei da Comédia, apesar do nome, não é exclusivamente um filme de humor, apesar de ter vários momentos engraçados e ter como grande referência das personagens os grandes humoristas da época e os seus talk-shows. É também um filme de crime e drama que faz com que o espectador, em várias ocasiões, se sinta intrigado, constrangido, alegre e ao mesmo tempo angustiado. Scorsese conseguiu trazer através de Rupert Pupkin e Masha (interpretada por Sandra Bernhard) momentos cómicos e, simultaneamente, dramáticos, mostrando o caráter das personagens e os seus problemas.


 "Dois anos depois de ter realizado Touro Enraivecido (Raging Bull), Martin Scorsese voltou a lançar um filme que viria a tornar-se num clássico do cinema (…)"


           
Como já referi, Todd Philips admitiu várias vezes que colheu em Taxi Driver e em O Rei da Comédia inspiração para escrever e realizar o Joker, filme que veio a ter uma grande receção positiva entre os críticos e a audiência. Ao rever O Rei da Comédia, apercebi-me ainda mais das semelhanças entre os filmes e senti pena por não ter revisto o filme antes de assistir pela primeira vez o Joker, isto porque, ao voltar a ver o filme de Scorsese, as memórias que me surgem são do Joker como comparação, algo que deveria ter acontecido ao contrário, pois um é que inspirou o outro. Independentemente das semelhanças e da inspiração, um filme não anula o outro ou faz com que um seja uma melhoria. O Joker é resultado de inspiração de duas obras do mesmo realizador, onde se juntam atributos dos dois e se forma um novo filme, com uma história diferente. Arthur Fleck é uma personagem adaptada das BDs, e Todd Philips e Scott Silver adaptaram-na para o grande ecrã, agarrando em traços de Rupert Pupkin (como o humor, o sonho de se tornar comediante e ter um talk-show, a questão de viver sozinho com a mãe ou até um romance que achava real) e de Travis Bickle (como o seu lado criminoso e homicida, ou os traumas e problemas psicológicos que o fazem cometer loucuras e ver um mundo injusto), criando uma nova personagem.

            Voltando apenas para O Rei da Comédia e largando todas as comparações e inspirações que este filme teve e serviu, esta longa metragem de Martin Scorsese pode ser vista como uma crítica à sociedade e aos perigos de um sonho que se quer realizado rapidamente sem que para isso se construa. Rupert Pupkin, apesar de se considerar um comediante, era um stalker que pretendia atingir a fama, mesmo que para isso fosse necessário cometer crimes. Desde o início que percebemos que Rupert não é totalmente são, quando este ajuda Jerry Langford (interpretado por Jerry Lewis) a chegar ao carro, ultrapassando o mar de fãs e, de seguida, invade o veículo de Jerry para convencer este a lançá-lo no mundo da comédia, pedindo para que lhe dê uma oportunidade no talk-show. Rupert vê em Jerry um possível padrinho da comédia, considerando o único caminho de chegar à fama sem sequer pensar noutras soluções, criando uma teimosia e um sentimento de necessidade que o vão levar à loucura e ao crime.


"Rupert vê em Jerry um possível padrinho da comédia, considerando o único caminho de chegar à fama (…)"


            Esta insanidade de Rupert está representada quer pelos seus atos de stalker e criminosos, quer pela maneira como a realização nos mostra as suas divagações e os seus momentos mais solitários. Momentos como o corte que há entre a despedida de Rupert e de Jerry depois da viagem de carro e o jantar entre estes dois, onde Rupert já é um humorista bem-sucedido e até tem um pintor a retratar o momento. É também durante esta cena que a realização decide introduzir cortes entre o jantar e a mãe dele a chamar, fazendo o espectador colocar-se na pele do protagonista e variar entre a imaginação e a realidade. Estes cortes temporais rápidos e súbitos aparecem do nada, semelhantes a um sonho que se vê interrompido por um acordar repentino. Até o desagrado de Rupert para com a mãe nos mostra o quão real este vê os sonhos, iludindo-se e deformando a realidade dele. Os cortes rápidos, para mim, trouxeram uma incerteza sobre o que estava a ver, isto é, se o que se estava a passar era real ou imaginação. Fiquei várias vezes confuso sobre se o que estava a ver era um sucesso de Rupert, ou se era mais um sonho, como foi o caso do jantar com Rita (interpretada por Diahnne Abbott). O filme começa com uma separação clara entre a realidade e a ficção, mas ao longo do filme os cortes nesses momentos tornam-se mais raros e a realidade e a imaginação quase que se juntam, criando um sentimento de dúvida no espectador. Isto só é possível devido a um argumento tão bem escrito e a uma realização ímpar que tornam estes momentos angustiantes para quem vê, pois nunca sabe o que vai acontecer, algo semelhante à personagem de De Niro que se mostra inconstante e bastante imprevisível.


"Momentos como o corte que há entre a despedida de Rupert e de Jerry depois da viagem de carro e o jantar entre estes dois, onde Rupert já é um humorista bem-sucedido e até tem um pintor a retratar o momento."


            Também Masha, ao variar rapidamente entre alegria e tristeza, ou histerismo e a calma, ou a loucura e o amor demonstra ser uma personagem transtornada com a vida e com uma insanidade preocupante, criando momentos constrangedores e que deixam o espectador inquieto com o que é capaz de fazer. Masha é uma personagem mais agressiva e com um objetivo não tão claro em relação a Rupert, fazendo com que esta dupla seja instável e, ao mesmo tempo, cómica. Já Rupert é uma personagem com um objetivo claro, mostrar o seu talento numa só noite durante o talk-show, sendo capaz de tudo para atingir esse fim. Rupert não é agressivo nem mal-educado, mas as suas insanidades aliadas ao narcisismo levam-no a cometer loucuras e a criar mal-estar, como foram os casos do jantar com Rita ou o momento em que invade a casa de Jerry, fazendo-se passar por amigo chegado deste.

            Robert De Niro era já um nome muito conhecido em Hollywood, pois já havia sido galardoado com dois Oscars antes de 1982, tanto como melhor ator em O Touro Enraivecido, como, também, melhor ator secundário em O Padrinho: Parte II. Mas mesmo em O Rei da Comédia, De Niro não tirou descanso e entregou mais uma grande representação, sendo capaz de mostrar a teimosia, a sede de sucesso instantâneo e os perigos de uma insanidade quer através de diálogos com outras personagens, quer através de falas onde o protagonista se imagina a conviver com outros, mas que não passam de manequins. O ator merecia ter sido mais aclamado entre a crítica da época pela sua atuação, mas, se formos a ver, este filme é um exemplo de um envelhecimento positivo e de que um clássico não tem obrigação de ser um filme com um sucesso enorme na sua altura. Para vermos bem a frustração do filme no período do seu lançamento, O Rei da Comédia, na gala dos Oscars referentes a esse ano, não foi nomeado para nenhuma categoria, embora tivesse ganho o BAFTA de melhor argumento e tivesse mais quatro nomeações, entre elas a de melhor direção e de melhor ator. Nem mesmo nas bilheteiras este filme teve um grande sucesso, não sendo capaz de suplantar os custos de produção.


"De Niro não tirou descanso e entregou mais uma grande representação (…) quer através de diálogos com outras personagens, quer através de falas onde o protagonista se imagina a conviver com outros (…)"


            Se falamos da atuação de De Niro e o quão bem este esteve, também temos de falar de Jerry Lewis e Sandra Bernhard. Lewis tem uma atuação incrível, representando um profissional experiente, prudente e calmo até nos momentos mais intensos e enervantes. Já Sandra Bernhard, apesar de achar que houve ocasiões em que poderia ser melhor a entregar a personagem, teve momentos muito bons, em que consegue transmitir uma mulher com perturbações mentais e sem um objetivo claro, mas que vê em Rupert uma ajuda. A melhor sequência desta é no momento de transtorno mental em que alterna entre vários sentimentos, criando uma incerteza sobre o que era capaz de fazer.


"Já Sandra Bernhard (…) consegue transmitir uma mulher com perturbações mentais e sem um objetivo claro"


            Todo o filme tem excelentes músicas e uma trilha sonora à altura. O compositor responsável pela trilha sonora é Robbie Robertson, que mais recentemente voltou a compor para Scorsese em O Irlandês.

O Rei da Comédia é um clássico que envelheceu bem e que todos deviam ver. É um filme dramático que mistura a realidade com a imaginação sem se perder no seu rumo, sendo capaz de mostrar o perigo da teimosia e de uma loucura numa sociedade em que o apoio e a preocupação para com o outro são raras.

“É melhor ser rei por uma noite do que um idiota a vida toda”

João Maravilha

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