A Ganha-Pão (2017)

 


       Uma rapariga afegã vê-se obrigada a mudar toda a sua vida e a tornar-se num rapaz aos olhos dos outros, para conseguir sustentar a sua família durante a ocupação Talibã de Cabul.

        A Ganha-Pão (The Breadwinner) é a primeira longa metragem dirigida por Nora Twomey, uma das fundadoras do estúdio de animação Cartoon Saloon. Este estúdio já produziu filmes como The Secret of Kells (2009), A Canção do Mar (2014), e o mais recente WolfWalkers (2020). Este filme é uma adaptação do bestseller com o mesmo nome, escrito por Deborah Ellis. O filme acabou nomeado para o Oscar de Melhor Filme de Animação, em 2018, sendo o único filme de animação não produzido nos EUA nomeado nesse ano, uma vez que o filme é uma coprodução canadiense, irlandesa e luxemburguesa. The Breadwinner estava nomeado juntamente com filmes como Ferdinand, Loving Vincent, The Boss Baby e o vencedor Coco, produzido pela grande produtora Pixar Animation Studios. Uma das produtoras do filme é a já conceituada atriz Angelina Jolie.

"O filme tem uma animação 2D, com imagens mais lisas e, como já é hábito deste estúdio de animação (…)"

        A Ganha-Pão é um filme lindíssimo que retrata a dor e a impotência da mulher afegã durante a guerra. O tema do filme anda sempre em redor da guerra, mas sem que tenhamos imagens de horror e repulsa. O filme tem uma animação 2D, com imagens mais lisas e, como já é hábito deste estúdio de animação, sem que seja necessário o uso total do 3D para embelezar os momentos, sendo que esses não necessitam de qualquer embelezamento por parte da animação já que a história e a maneira como esta é contada trata bem do assunto. Exemplo disso é o uso de uma animação stop motion de recorte para representar o conto que é narrado ao longo do filme pelas diferentes personagens, onde é escolhido um tipo de animação mais mecanizado e não tão pormenorizado em relação às texturas, e movimentos que aparecem através de transições simples e possuem imagens belas, com um contraste de cores escuras e de cores frias, ou com a escuridão da noite e a claridade das estrelas. Mas não é só durante a narrativa do conto que existe esse contraste de tons, pois no filme todo existe um grande uso de cores, principalmente quentes. O castanho e as suas variantes estão quase sempre presentes nas casas e na paisagem, como as cores da areia, contrastando com cores como o vermelho, o amarelo e o laranja das especiarias e dos hijabs.

"(…) uso de uma animação stop motion de recorte para representar o conto que é narrado ao longo do filme pelas diferentes personagens (…)"

        Se a guerra é o tema principal, o fanatismo religioso está também presente em toda a narrativa, desde o início da guerra até ao conto que é narrado ao longo do filme. Este fanatismo aparece representado na forma dos talibãs, que controlam a cidade e obrigam a que exista uma censura, uma falta de condições de vida (falta de comida, de trabalho, etc.) e também uma falta de direitos das mulheres, que são obrigadas a saírem sempre acompanhadas por um homem.

"(…) o sentimento de impotência e a dor de ser mulher numa cultura onde é um produto do homem e nada pode fazer sem ele."

       É neste último ponto que passamos para um dos grandes focos do filme, o sentimento de impotência e a dor de ser mulher numa cultura onde é um produto do homem e nada pode fazer sem ele. É também através deste sentimento que nos é apresentado o desenvolvimento de algumas personagens, como o caso de Parvana (que é interpretada através da voz de Saara Chaudry). Desde o início do filme, quando está sentada com o pai (Ali Badshah), mostra até o seu lado mais infantil (não no mau sentido, mas num sentido de idade), pois não percebe o porquê de ter de vender o seu vestido, algo que mais tarde acabará por ser ela a decidir fazer, quando percebe as dificuldades pelas quais a família passa. Parvana cresce ao longo do filme como mulher, deixando de ser a menina que acompanhava o pai e que não percebia o porquê de ter de vender as suas coisas, para se tornar a responsável por alimentar a sua família e tentar salvar o seu pai da cadeia. Por mais estranho que isto possa parecer, é no momento em que Parvana corta o seu cabelo e que tem de se comportar como um homem que ela cresce como mulher, pois é aí que se apercebe ainda mais das grandes dificuldades da vida e, principalmente, de ser mulher. Parvana é obrigada a mudar de vida e a ter de ser ela a colocar a comida em sua casa, tendo de passar a trabalhar e a aprender como ser um homem numa sociedade que é cega aos direitos da mulher. 

"(…) é no momento em que Parvana corta o seu cabelo e que tem de se comportar como um homem que ela cresce como mulher (…)"

            É durante este tempo que ela encontra uma antiga amiga dela, Shauzia/Deliwar (Soma Chhaya), que passou pelo mesmo e lhe mostra os caminhos mais fáceis para contornar as dificuldades, colocando-as, muitas vezes, em dificuldades ainda maiores, como trabalhos mais pesados e que colocam a vida dela e dos seus familiares em risco. É também através de Shauzia que temos uma visão de esperança com o desconhecimento e divindade do mar. Razaq (Kawa Ada), um talibã que nos é apresentado no início do filme, sendo um talibã mais experiente e mais calmo é, a meu ver, juntamente com Parvana, uma das personagens que mais muda durante o filme. Apesar de nunca se ter mostrado como um talibã violento, vemos nele o exemplo de compaixão e de amor pelo outro, pois torna-se a grande ajuda da protagonista na hora de libertar o pai e mostra o que um simples sentimento como a compaixão pode alterar numa pessoa, mudando os seus ideais e as suas ações.

"Razaq, um talibã que nos é apresentado no início do filme, sendo um talibã mais experiente e mais calmo (...)"

            O filme possui grandes momentos de tensão, levando o suspense e o sobressalto da guerra para o ecrã, mostrando o sacrifício que uma mãe é capaz de cometer para salvar os filhos, o arriscar de tudo para salvar um pai, ou uma pequena faísca que origina a morte de milhares de pessoas. Estes momentos são comparados e, ao mesmo tempo, acalmados através do conto, onde o herói vive também uma guerra, e tem de ser este a salvar a sua vila, e Parvana vai contando o conto ao longo do filme, de início para acalmar o irmão, depois para acalmar Shauzia e, no final, para se acalmar a si própria no momento drástico e que poderia ser fatal. É também no conto onde vemos o grande herói de Parvana, Sulayman, o irmão falecido da mesma que passa a ser o protagonista do conto e que serve de inspiração para esta ganhar coragem.

Nada desse suspense seria possível se não fosse a grande trilha sonora composta pelos irmãos Mychael Danna e Jeff Danna, que alimentam ao pormenor a incerteza e o clima de guerra através da sua composição.

A Ganha-Pão é um excelente filme de animação, que retrata um tema sensível e atual, focando-se não só no tema da guerra, mas também da emancipação feminina e no fanatismo religioso.

“Levanta as palavras, não a voz”

João Maravilha

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