Uma rapariga afegã vê-se
obrigada a mudar toda a sua vida e a tornar-se num rapaz aos olhos dos outros,
para conseguir sustentar a sua família durante a ocupação Talibã de Cabul.
A Ganha-Pão (The
Breadwinner) é a primeira longa metragem dirigida por Nora Twomey, uma das
fundadoras do estúdio de animação Cartoon Saloon. Este estúdio já produziu
filmes como The Secret of Kells (2009), A Canção do Mar (2014), e
o mais recente WolfWalkers (2020). Este filme é uma adaptação do
bestseller com o mesmo nome, escrito por Deborah Ellis. O filme acabou nomeado
para o Oscar de Melhor Filme de Animação, em 2018, sendo o único filme de
animação não produzido nos EUA nomeado nesse ano, uma vez que o filme é uma
coprodução canadiense, irlandesa e luxemburguesa. The Breadwinner estava
nomeado juntamente com filmes como Ferdinand, Loving Vincent, The
Boss Baby e o vencedor Coco, produzido pela grande produtora Pixar
Animation Studios. Uma das produtoras do filme é a já conceituada atriz
Angelina Jolie.
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"O filme tem uma animação 2D, com imagens mais lisas e, como já é hábito deste estúdio de animação (…)" |
A Ganha-Pão é um filme
lindíssimo que retrata a dor e a impotência da mulher afegã durante a guerra. O
tema do filme anda sempre em redor da guerra, mas sem que tenhamos imagens de
horror e repulsa. O filme tem uma animação 2D, com imagens mais lisas e, como
já é hábito deste estúdio de animação, sem que seja necessário o uso total do
3D para embelezar os momentos, sendo que esses não necessitam de qualquer
embelezamento por parte da animação já que a história e a maneira como esta é
contada trata bem do assunto. Exemplo disso é o uso de uma animação stop motion
de recorte para representar o conto que é narrado ao longo do filme pelas
diferentes personagens, onde é escolhido um tipo de animação mais mecanizado e
não tão pormenorizado em relação às texturas, e movimentos que aparecem através
de transições simples e possuem imagens belas, com um contraste de cores
escuras e de cores frias, ou com a escuridão da noite e a claridade das
estrelas. Mas não é só durante a narrativa do conto que existe esse contraste
de tons, pois no filme todo existe um grande uso de cores, principalmente
quentes. O castanho e as suas variantes estão quase sempre presentes nas casas
e na paisagem, como as cores da areia, contrastando com cores como o vermelho,
o amarelo e o laranja das especiarias e dos hijabs.
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"(…) uso de uma animação stop motion de recorte para representar o conto que é narrado ao longo do filme pelas diferentes personagens (…)"
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Se a guerra é o tema principal, o
fanatismo religioso está também presente em toda a narrativa, desde o início da
guerra até ao conto que é narrado ao longo do filme. Este fanatismo aparece representado
na forma dos talibãs, que controlam a cidade e obrigam a que exista uma
censura, uma falta de condições de vida (falta de comida, de trabalho, etc.) e
também uma falta de direitos das mulheres, que são obrigadas a saírem sempre
acompanhadas por um homem.
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"(…) o sentimento de impotência e a dor de ser mulher numa cultura onde é um produto do homem e nada pode fazer sem ele." |
É neste último ponto que passamos
para um dos grandes focos do filme, o sentimento de impotência e a dor de ser
mulher numa cultura onde é um produto do homem e nada pode fazer sem ele. É
também através deste sentimento que nos é apresentado o desenvolvimento de
algumas personagens, como o caso de Parvana (que é interpretada através da voz
de Saara Chaudry). Desde o início do filme, quando está sentada com o pai (Ali
Badshah), mostra até o seu lado mais infantil (não no mau sentido, mas num
sentido de idade), pois não percebe o porquê de ter de vender o seu vestido,
algo que mais tarde acabará por ser ela a decidir fazer, quando percebe as
dificuldades pelas quais a família passa. Parvana cresce ao longo do filme como
mulher, deixando de ser a menina que acompanhava o pai e que não percebia o
porquê de ter de vender as suas coisas, para se tornar a responsável por
alimentar a sua família e tentar salvar o seu pai da cadeia. Por mais estranho
que isto possa parecer, é no momento em que Parvana corta o seu cabelo e que
tem de se comportar como um homem que ela cresce como mulher, pois é aí que se
apercebe ainda mais das grandes dificuldades da vida e, principalmente, de ser
mulher. Parvana é obrigada a mudar de vida e a ter de ser ela a colocar a
comida em sua casa, tendo de passar a trabalhar e a aprender como ser um homem
numa sociedade que é cega aos direitos da mulher.
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"(…) é no momento em que Parvana corta o seu cabelo e que tem de se comportar como um homem que ela cresce como mulher (…)"
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É durante este tempo que ela
encontra uma antiga amiga dela, Shauzia/Deliwar (Soma Chhaya), que passou pelo
mesmo e lhe mostra os caminhos mais fáceis para contornar as dificuldades,
colocando-as, muitas vezes, em dificuldades ainda maiores, como trabalhos mais
pesados e que colocam a vida dela e dos seus familiares em risco. É também
através de Shauzia que temos uma visão de esperança com o desconhecimento e
divindade do mar. Razaq (Kawa Ada), um talibã que nos é apresentado no início
do filme, sendo um talibã mais experiente e mais calmo é, a meu ver, juntamente
com Parvana, uma das personagens que mais muda durante o filme. Apesar de nunca
se ter mostrado como um talibã violento, vemos nele o exemplo de compaixão e de
amor pelo outro, pois torna-se a grande ajuda da protagonista na hora de
libertar o pai e mostra o que um simples sentimento como a compaixão pode
alterar numa pessoa, mudando os seus ideais e as suas ações.
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"Razaq, um talibã que nos é apresentado no início do filme, sendo um talibã mais experiente e mais calmo (...)"
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O filme possui grandes momentos
de tensão, levando o suspense e o sobressalto da guerra para o ecrã, mostrando
o sacrifício que uma mãe é capaz de cometer para salvar os filhos, o arriscar
de tudo para salvar um pai, ou uma pequena faísca que origina a morte de
milhares de pessoas. Estes momentos são comparados e, ao mesmo tempo, acalmados
através do conto, onde o herói vive também uma guerra, e tem de ser este a
salvar a sua vila, e Parvana vai contando o conto ao longo do filme, de início
para acalmar o irmão, depois para acalmar Shauzia e, no final, para se acalmar
a si própria no momento drástico e que poderia ser fatal. É também no conto
onde vemos o grande herói de Parvana, Sulayman, o irmão falecido da mesma que
passa a ser o protagonista do conto e que serve de inspiração para esta ganhar
coragem.
Nada desse suspense seria
possível se não fosse a grande trilha sonora composta pelos irmãos Mychael Danna
e Jeff Danna, que alimentam ao pormenor a incerteza e o clima de guerra através
da sua composição.
A Ganha-Pão é um excelente
filme de animação, que retrata um tema sensível e atual, focando-se não só no
tema da guerra, mas também da emancipação feminina e no fanatismo religioso.
“Levanta as palavras, não a voz”
João Maravilha
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